Transtornos
do desenvolvimento podem ser definidos como quaisquer entidades nosológicas ou
eventos, de origem genética ou adquiridos até os primeiros meses de vida, que
comprometam o desenvolvimento cerebral do indivíduo, podendo causar
deficiências, físicas ou mentais, bem como restrições à funcionalidade e à
participação social. Considero, então, que a deficiência mental, a paralisia
cerebral, a epilepsia, os transtornos específicos de aprendizagem, bem como
doenças mais graves, como a distrofia muscular progressiva tipo Duchenne e
síndromes neurodegenerativas etc. constituem todos exemplos de TDs. As diversas
manifestações neuropsicológicas dos transtornos do desenvolvimento podem ser
agrupadas em síndromes caracterizadas por padrões recorrentes de dificuldades
associadas, as quais refletem disfunções em componentes informacionais e
circuitos neuronais específicos.
1) Deficiência mental:
1) Deficiência mental:
Na
prática a síndrome de deficiência mental é operacionalizada como um QI abaixo
de 80 (ou 70 em certos ambientes culturais) em que ocorre prejuízo ao
funcionamento adaptativo independente do indivíduo. Apenas inteligência
rebaixada não é suficiente para caracterizar deficiência mental. Há necessidade
de haver comprometimento das funções adaptativas, principalmente da capacidade
e auto-administrar sua vida, potencialmente e futuramente, no caso de crianças.
Antigamente se atribuía a deficiência mental a um rebaixamento global da
inteligência geral, o chamado fator g. Atualmente existem evidências de que
diversas condições de origem genética ou adquirida podem comprometer as funções
cognitivas e adaptativas de forma irregular, havendo funções mais comprometidas
e funções relativamente preservadas. As especificidades determinadas por cada
etiologia correspondem ao que se chama de fenótipo cognitivo ou comportamental.
P. ex., um fenótipo específico caracterizado por atraso na aquisição da
linguagem (hemisfério esquerdo) e agitação (lobo frontal) é observado em muitas
condições com herança ligada ao cromossoma X, tais como a distrofia muscular progressiva
tipo Duchenne. A síndrome de Klinefelter se associa também com disfunção do
hemisfério esquerdo, sob a forma de dislexia. Na síndrome de Turner e no
hipotireoidismo congênito tratado, por outro lado, ocorre um padrão de
comprometimento da coordenação motora, habilidades visoespaciais, aritmética e
cognição espacial que caracteriza o transtorno não-verbal de aprendizagem.
Algumas das principais causas de deficiência mental são o alcoolismo materno
entre as causas ambientais, a síndrome de Down entre as causas cromossômicas e
a síndrome do sítio frágil no cromossoma X entre as causas genéticas. A
avaliação neurocognitiva é importante, portanto, para caracterizar o fenótipo
cognitivo ou comportamental.
2) Transtornos de aprendizagem:
2) Transtornos de aprendizagem:
O termo transtorno de aprendizagem refere-se a
transtornos específicos do desenvolvimento que se diferenciam da deficiência
mental pelo comprometimento seletivo de determinados domínios do funcionamento
e pela presença de QI normal e que são caracterizados em função da sua relação
com as dificuldades de aprendizagem escolar. Ou seja, trata-se de transtornos
do desenvolvimento em que a criança apresenta um QI na faixa da normalidade e
que se manifesta por dificuldades de aprendizagem escolar em um domínio
circunscrito como a leitura ou a aritmética.
3) Transtornos disexecutivos:
3) Transtornos disexecutivos:
Do ponto de vista cognitivo, uma série de
transtornos de desenvolvimento se caracteriza por impulsividade e dificuldades
com a auto-regulação. O transtorno do déficit de atenção por hiperatividade (TDAH)
é diagnosticado pela presença de sintomas relacionados com impulsividade,
hiperatividade e desatenção. Existem formas predominantemente
impulsivas/hiperativas, predominantemente desatentas e mistas de TDAH. O TDAH
apresenta comorbidade freqüente com transtorno desafiador opositivo (TDO) e
transtorno de conduta (TC). TDO é denominação psiquiátricas para crianças que
são desobedientes, rebeldes e desafiadoras. O TC é diagnosticado quando o TDO
apresenta características persistentes e assume contornos mais graves. O TDAH
junto com o TDO e o TC constituem o chamado grupo dos transtornos
externalizantes do comportamento, ou seja, transtornos que se manifestam sob a
forma de comportamentos manifestos, que assumem características perturbadoras
do ambiente. Indivíduos com transtornos externalizantes apresentam déficits em
funções executivas, tais como avaliadas por testes neuropsicológicos (Barkley,
2001). Mas os déficits neuropsicológicos não têm validade diagnóstica, as taxas
de falsos negativos e positivos são muito altas. Uma explicação alternativa
para a fisiopatologia do TDAH é considerá-lo como um transtorno dos processos
de reforçamento e extinção, fazendo com que a janela temporal em que os
reforçadores operam seja mais curta. O modelo comportamental caracteriza melhor
a natureza do TDAH, uma vez que não se trata de um déficit cognitivo (o QI é
normal) ou atencional (os dados sobre déficits atencionais no TDAH não são
consistentes). As evidências neurobiológicas disponíveis sugerem que o TDAH
representa uma variação de polimorfismos genéticos na transmissão
dopaminérgicas em circuitos frontais córtico-subcorticais lateralizados para a
direita. Disfunções executivas também fazem parte do quadro clínico de muitas
doeças neurológicas tais como paralisia cerebral, algumas epilepsias, acidente
vascular cerebral etc.
4) Atraso de aquisição da linguagem oral:
O atraso
na aquisição da linguagem é um dos principais sintomas de muitos transtornos do
desenvolvimento tais como deficiência mental ou autismo. Mas existe um grupo de
crianças com inteligência e socialização normal que apresentam o transtorno
específico de desenvolvimento da linguagem oral (TEDLO), cuja principal
dificuldade reside no domínio dos aspectos fonológicos da linguagem. Nas
crianças com TEDLO ocorre a persistência de processos fonológicos que são
normais em etapas anteriores do desenvolvimento, tais como as dislalias por
troca (RATO -> /latu/) e por supressão (PRATO -> /patu/). Um subgrupo de
crianças com TEDLO apresenta dificuldades na percepção dos sons da fala devido
a um transtorno da decodificação temporal de séries de estímulos transitórios.
O prognóstico é bom, mas as crianças com TEDLO apresentam risco de dificuldades
de aprendizagem da leitura. A distrofia muscular progressiva tipo Duchenne é um
exemplo de patologia genética em que pode ocorrer atraso no desenvolvimento da
linguagem oral.
5) Dislexia específica de evolução:
As etapas
iniciais de aprendizagem da leitura em uma escrita alfabética exigem o domínio
do princípio alfabético, ou seja, da capacidade de decodificar as relações
sistemáticas entre grafemas e fonemas. Um contingente de crianças com
inteligência normal apresenta dificuldades nas habilidades fonológicas de
segmentar mentalmente as palavras nos seus fonemas constituintes de modo a
estabelecer correlações com os grafemas pelos quais são representados na
escrita. As dificuldades de decodificação fonológica também podem estar
associadas a déficits na decodificação temporal de séries de estímulos
transitórios e constituem a base fisiopatológica da dislexia específica de
evolução. As dificuldades são persistentes e, à medida que as exigências
escolares vão aumentando, começam a surgir dificuldades de interpretação de
textos. O diagnóstico de dislexia não é incompatível com sucesso pessoal e
profissional desde que os aspectos pedagógicos e socioemocionais sejam bem
equacionados. Um exemplo de condição cromossômica onde ocorrem déficits
relacionados ao hemisfério esquerdo é a síndrome de Klinefelter.
6) Transtorno não-verbal de aprendizagem:
O
transtorno não-verbal de aprendizagem (TNVA) é uma das síndromes
neuropsicológicas do desenvolvimento menos conhecidas (Rourke, 1995). Trata-se
de crianças que apresentam um padrão de comprometimento caracterizado por
dificuldades de coordenação motora, nas habilidades visoespaciais e aritmética,
na cognição social e na capacidade de fazer inferências. Na idade pré-escolar
podem apresentar características comportamentais externalizantes como agitação
e desobediência, mas na idade escolar e adolescência o comprometimento
socioemocional muda para um padrão internalizante de depressão e ansiedade. As
crianças com TNVA parecem ser ingênuas e desprotegidas, apresentam dificuldades
com os aspectos pragmáticos da comunicação, ou seja, para desambiguar o
contexto social, principalmente no que se refere à mecanismos de ironia,
malícia etc. Tendem a fazer interpretações concretas. As dificuldades
pragmáticas e não-verbais contrastam o desenvolvimento relativamente normal da
fonologia, da sintaxe e da leitura. O discurso pode ser exuberante porém
relativamente desprovido de conteúdo (“cocktail party speech”). Às vezes as
crianças com TDAH podem parecer “verbosas”, sugerindo uma sobreposição de
sintomas com a síndrome de Asperger. As dificuldades no TNVA podem ser
atribuídas a disfunções da substância branca e/ou do hemisfério direito.
Enquanto o hemisfério esquerdo se caracteriza por predomínio das conexões
córtico-corticais de curta-distância que suportam um estilo analítico de
processamento, no hemisfério direito predominam as conexões de longa-distância,
relacionadas com o um processamento mais holístico. A disfunção do hemisfério
direito é uma condição necessária e a disfunção da substância branca é
necessária e suficiente para causar o TNVA. O TNVA caracteriza o fenótipo
comportamental de muitas condições tais como síndrome fetal alcoólica,
hidrocefalia congênita, síndrome de Turner, síndrome de Sotos, hipotireoidismo
congênito precocemente tratado, seqüela de tratamento profilático para leucemia
linfocítica aguda etc.
7) Discalculia específica de evolução:
7) Discalculia específica de evolução:
As discalculias, ou dificuldades de
processamento numérico e para a aprendizagem de operações aritméticas, podem
ocorrer por três mecanismos principais. As dificuldades podem ser de natureza
de lingüística, consistindo de dificuldades para reconhecer, produzir ou
transcodificar entre os vários sistemas de notação numérica, as quais refletem
uma disfunção do hemisfério esquerdo. O segundo padrão é atribuído a
dificuldades visoespaciais e se manifesta sob a forma de dificuldades para
realizar operações sobre o valor posicional dos algarismos no sistema arábico
de notação. As discalculias visoespaciais refletem tanto disfunções do
hemisfério esquerdo quanto direito, mas são mais graves em conseqüência de
comprometimentos à esquerda. Finalmente, existe um padrão de dificuldades
conseqüente à incapacidade de representação analógica de grandezas, ou seja, um
transtorno do desenvolvimento do conceito de número (anaritmia). A dificuldade
de adquirir o conceito de número é causada por disfunções bilaterais do lobo
parietal. Várias questões permanecem em aberto no estudo das discalculias do
desenvolvimento, como suas relações com outros transtornos de aprendizagem tais
como a dislexia, o TNVA e síndrome de Gerstmann do desenvolvimento (agnosia
digital, desorientação direita-esquerda, disgrafia e acalculia). Algumas
questões importantes de pesquisa: a) as dificuldades aritméticas no TNVA se
devem a dificuldades visoespacial ou refletem a presença de uma anaritmia?; b)
a síndrome de Gerstmann do desenvolvimento reflete disfunções do hemisfério
esquerdo ou um padrão semelhante ao TNVA?
8) Autismo e síndrome de Asperger:
O autismo e a síndrome de Asperger fazem parte
do grupo dos transtornos invasivos do desenvolvimento, caracterizados por
sintomas nas três áreas de dificuldades na interação social, comunicação e
restrição do repertório comportamental/dificuldades com o comportamento lúdico
e imaginativo. De modo simplificado pode-se dizer que o padrão neuropsicológico
no autismo corresponde a um comprometimento do hemisfério esquerdo,
caracterizado pelo fato de que mais de 50% das crianças com autismo não falam
ou apresentam alterações graves no desenvolvimento da linguagem. O padrão de
comprometimento na síndrome de Asperger, por outro lado, reflete uma disfunção
do hemisfério direito, fazendo parte do TNVA. A natureza das dificuldades
primárias no autismo e síndrome de Asperger é um assunto controverso. É
geralmente aceito que os padrões qualitativamente distintos de interação social
nos indivíduos autistas podem ser atribuídos a dificuldades com a construção de
representações reflexivas, de ordem superior, dos próprios estados mentais e
dos estados mentais alheios (teoria da mente). As discussões dizem respeito aos
mecanismos do déficit: se refletem um déficit congênito em módulo da cognição
social implementado pelo córtex temporal superior, amígdala e lobo frontal ou
se derivam de uma disfunção executiva que prejudica o desenvolvimento de
representações de estados mentais na interação com o ambiente social.
8) Autismo e síndrome de Asperger:
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