Seguidores

sexta-feira, 14 de outubro de 2011

A perspectiva desenvolvimental



A perspectiva desenvolvimental
O enfoque “desenvolvimental” é importante tanto por razões clínicas quanto por razões neuropsicológicas propriamente ditas. Do ponto de vista clinico é muito importante considerar a fase do ciclo vital em que o cliente se encontra. Cada fase do ciclo vital se caracteriza por uma constelação de crises ou tarefas evolutivas. São questões que a biologia, a cultura e a família colocam para o indivíduo resolver e de cuja solução depende o sucesso evolutivo. A entrada e adaptação na escola, p. ex., é crucial para a aquisição das ferramentas culturais básicas que permitem a navegação social. Fatores neurológicos contribuem, além de questões sociais, culturais e familiares, para o sucesso adaptativo na escola. A neuropsicologia objetiva investigar o grau em que as eventuais dificuldades podem ser atribuídas a fatores neurológicos.

Um exemplo de como as expectativas normativas influenciam as reações do indivíduo e da família às condições crônicas de saúde é a situação em que um adulto jovem é acometido por uma doença cronicamente incapacitante como a esclerose múltipla. As representações sociais sobre saúde e doença prescrevem expectativas segundo as quais a probabilidade de o indivíduo adoecer é maior na velhice. Ninguém espera ficar gravemente enfermo aos trinta anos de idade. O impacto das doenças crônicas no adulto jovem pode, portanto, ser agravado pela sua imprevisibilidade, além da incontrolabilidade e comparações sociais negativas. As comparações sociais desfavoráveis são desencadeadas quando o indivíduo se compara com as pessoas da mesma idade e verifica que elas estão envolvidas com a carreira, com os filhos etc. enquanto ele precisa lidar com a doença.

Outro exemplo é a situação de uma família em que nasce uma criança com malformações e/ou com algum transtorno do desenvolvimento. Todos sonhamos com filhos perfeitos, que realizem nossos sonhos e que compensem nossas imperfeições. Esses sonhos e aspirações são obviamente sempre frustrados, pois os filhos não constituem uma prolongação de nós próprios, mas são seres individualizados com seus próprios perfis de qualidades e defeitos. Mas a frustração é muito maior quando a criança apresenta ou adquire algum problema mais grave, principalmente neurológico. Os pais sentem-se frustrados, ressentidos, perguntam-se por que aquilo foi acontecer justamente com eles. Muitas vezes os sentimentos são bastante ambíguos, mesclando emoções negativas e positivas, que podem originar sentimentos de culpa. O nascimento de uma criança com transtornos do desenvolvimento exige uma série de acomodações por parte dos pais. Quando nasce uma criança, os pais sempre precisam abdicar um pouco dos seus desejos e confortos. Mas no caso de crianças com transtornos do desenvolvem a cota de renúncia sempre é maior e envolve acréscimo de despesas, redistribuições de papéis e encargos relacionados ao cuidado da criança etc. Geralmente as mães assumem o papel de cuidadoras principais, mas a participação dos pais do sexo masculino é fundamental. Quando o pai tem uma atitude de apoiar e compartilhar os encargos os desfechos são sempre mais favoráveis.

Do ponto de vista clínico a perspectiva evolutiva é importante também no planejamento da reabilitação. Um enfoque do desenvolvimento em neuropsicologia busca sempre determinar o nível de desenvolvimento da criança, qual o seu perfil de pontos fortes e de pontos fracos. O exame neurocognitivo é essencial para determinar que trilhas do desenvolvimento podem, eventualmente, ter sido comprometidas pelo processo patológico, e quais caminhos permanecem viáveis. A consideração das possibilidades reais de desenvolvimento permite planejar a educação da criança de forma a compensar as dificuldades e aperfeiçoar o funcionamento nos domínios onde isso é viável.

Os psicólogos alemães Paul e Margareth Baltes propuseram um modelo de desenvolvimento bem-sucedido que pode ser aplicado no contexto da reabilitação. Segundo Baltes e Baltes, o desenvolvimento bem-sucedido em cada uma das etapas da vida se caracteriza por uma “política” eficaz de alocação de recursos entre as diversas metas do desenvolvimento: crescimento, manutenção e recuperação. No início da vida predominam as metas de crescimento enquanto no final da vida predominam a metas de manutenção e recuperação. Face a circunstâncias da vida que acarretam perdas - como p. ex., uma doença neurológica incapacitante -, faz-se necessária um balanço dos recursos e uma realocação de prioridades. O modelo de otimização seletiva com compensação (SOC) de Baltes e Baltes propõe que o bem-estar e o desenvolvimento podem ser assegurados através de um processo de seleção de domínios onde o crescimento ou recuperação funcional ainda é viável, otimização do funcionamento nesses domínios e compensação nos domínios onde o crescimento ou recuperação não são mais viáveis. A avaliação neuropsicológica contribui para o processo de seleção ajudando definir o perfil de funções comprometidas e preservadas e o nível de desempenho do cliente.

Neuropsicologicamente falando as considerações do desenvolvimento são também primordiais. O método anátomo-clínico foi desenvolvido a partir de dados obtidos com pacientes adultos e a aplicação dos seus procedimentos e modelos ao cérebro em desenvolvimento deve ser feita com cautela. O cérebro em desenvolvimento difere do cérebro adulto em pelo menos seis aspectos:

1) Mudanças maturacionais:
O próprio processo de desenvolvimento é um aspecto que precisa ser considerado na avaliação de crianças e adolescentes (Thomas & Karmiloff-Smith, 2002). Determinar o nível de desenvolvimento atingido nas diversas áreas é crucial pois alguns comportamentos são normais em uma dada faixa etária mas não em outras. Quando existe disfunção em algum domínio não é possível pressupor automaticamente como ocorre no caso de adultos com lesões focais, que as outras funções permanecerão indemnes. Ao contrário, o processo de desenvolvimento ocorre de forma global e mudanças em uma área repercutem em outras, tanto para o bem quanto para o mal. O mau funcionamento em um domínio acarreta mudanças em outros para compensá-lo.

2) Potencial para reorganização funcional:
 Quando ocorre uma lesão adquirida na infância as possibilidades de reorganização funcional são muito maiores do que no adulto. Após acidentes vasculares cerebrais em crianças e adolescentes, p. ex., as afasias geralmente são transitórias, enquanto os transtornos adquiridos da linguagem em adultos se revestem de características persistentes. Infelizmente, no caso de condições de origem genética as possibilidades de neuroplasticidade são bem mais modestas. É o caso, p. ex., das crianças com autismo, hiperatividade, dislexia etc. Todas essas condições podem ser substancialmente melhoradas através de esforços reabilitativos, mas as dificuldades ou suas seqüelas tenderão a persistir, ainda que minoradas. Os mecanismos fisiopatológicos de muitos transtornos do desenvolvimento como a síndrome do sítio frágil no cromossoma X, a síndrome de Rett, neurofibromatose tipo 1, esclerose tuberosa etc. envolvem transtornos da plasticidade sináptica.

3) Limitação intrínseca dos modelos de correlação estrutura-função:
 Os aspectos maturacionais e a neuroplasticidade do cérebro juvenil fazem com que os modelos de correlação anátomo-clínica derivados do estudo de lesões adquiridas em adultos tenham aplicabilidade limitada. Limitada não significa, entretanto, impossibilidade; significa apenas que é preciso ser cauteloso ao fazer inferências sobre correlações anátomo-clinicas em crianças e há necessidade de mais pesquisas e acúmulo de experiência. Observações clínicas antigas indicam que crianças com lesões adquiridas do hemisfério esquerdo, tais como aquelas observadas na paralisa cerebral hemiplégica, geralmente desenvolvem razoavelmente bem as funções lingüísticas (tradicionalmente atribuídas ao hemisfério esquerdo) e apresentam mais dificuldades no domínio visoespacial e social (tradicionalmente atribuídos ao hemisfério direito).

O caso da percepção de faces na síndrome de Williams pode ser tomado como um exemplo. O fenótipo cognitivo da síndrome de Williams é tradicionalmente considerado como parte do transtorno não-verbal de aprendizagem em que existem dificuldades com a cognição visoespacial, artimética e social e relativa preservação dos aspectos fonológicos e sintáticos da linguagem. Considerando que individuos com síndrome de Williams preservam a capacidade de reconhecimento de faces, mas têm dificuldades em tarefas visoespaciais e que indivíduos com prosopoagnosia do desenvolvimento apresentam o padrão inverso de comprometimento do reconhecimento de faces e preservação da cognição visoespacial, poderia ser interpretado como uma dupla-dissociação. Ou seja, como evidência para a existência de dois módulos cognitivos parcialmente segregáveis e que podem ser comprometidos independentemente por patologias do desenvolvimento. A consideração mais detalhada do padrão de desempenho no reconhecimento de faces dos indivíduos com síndrome de Williams mostrou, entretanto, que a realidade pode ser um pouco mais complexa. Estudos experimentais demonstraram que o reconhecimento de faces na síndrome de Williams é melhor naqueles casos em que a tarefa pode ser resolvida a partir do reconhecimento de detalhes singulares e pior para aqueles estímulos onde há a necessidade de apreender a configuração global. Permanece o fato de que os indivíduos com síndrome de Williams apresentam déficits em mecanismos relacionados com a apreensão de relações espaciais, mas essas dificulades podem, inclusive, interferir no desempenho de tarefas de reconhecimento. O exemplo da síndrome de Williams ilustra o fato de que os modelos cognitivos derivados do estudo de adultos podem ser utilizados com crianças e com patologias do desenvolvimento, mas há necessidade de uma análise cuidadosa da sua validade e mecanismos envolvidos.

4) Diferenças nos quadros clínicos e etiologias:
Além de os quadros clínicos e etiologias serem diferentes em crianças e adolescentes, sua expressão sintomática também é mais sutil e depende da fase do desenvolvimento. P. ex., uma das causas mais comuns de acidente vascular cerebral em crianças é a anemia falciforme ou os mecanismos embólicos, enquanto nos adultos predominam as etiologias ligadas à hipertensão arterial e aterosclerose. Lesões do lobo frontal em crianças muito novinhas, por outro lado, podem exigir anos até que seus efeitos sejam reconhecíveis, uma vez que essas estruturas não serão tão exigidas na primeira infância e idade pré-escolar quanto serão na transição para a adolescência e adolescência. Crianças com lesões cérebro-traumática na primeira infância podem se recuperar aparentemente de forma prodigiosa na idade pré-escolar, somente para apresentar transtornos graves da personalidade e da conduta na transição para a adolescência, conforme ilustram os casos relatados por Eslinger e cols.

5) Variabilidade situacional do desempenho:
 O comportamento de crianças, principalmente as mais novinhas, varia muito de um momento e de um contexto para outro. A variabilidade situacional do desempenho exige que o comportamento da criança seja amostrado em pelo menos dois momentos diferentes para que se possa ter uma idéia razoável do seu funcionamento. Algumas crianças podem se sentir inibidas ou amedrontadas no ambiente de consultório, exigindo um tempo para se adaptarem. Outras crianças podem melhorar o comportamento e o engajamento nas tarefas ao perceberem a interação com o examinador e as tarefas propostas como novidade ou desafio. Pode haver também discrepâncias quanto ao funcionamento no consultório, em casa e na escola. A avaliação completa exige, portanto, que se obtenha informações sobre o comportamento e o desempenho da criança em mais de uma ocasião. Além das suas expectativas, crianças pequenas têm seu desempenho influenciado por sono, fome e outras necessidades fisiológicas.

6) Sensibilidade ao contexto social, cultural e familiar:
O indivíduo constitui uma unidade com os contextos em que vive. O fato de o comportamento e o desempenho da criança exibirem grande sensibilidade contextual exige que essa possibilidade seja sempre considerada. Pais e professores podem, p. ex., desenvolver expectativas irrealistas quanto ao desempenho da criança, o que contribui para que ela se sinta pressionada e estressada ou que se revolte. Ou então, os pais e educadores podem ter expectativas muito baixas quanto ao desempenho da criança, o que também não contribui para melhorar seu comportamento. Noble, Norman e Farah (2005) observaram que as dificuldades de desempenho cognitivo das crianças de classe social mais acentuadas nos domínios da linguagem e das funções executivas, o que é compatível com o dado de que alguns transtornos, como a hiperatividade, apresentam uma prevalência muito maior em ambientes de carência sociocultural, sugerindo que a influência do ambiente pode ser importante na sua origem. Uma família mais estruturada contribui para que determinadas dificuldades não sejam percebidas como problemas. Em uma família menos funcional os mesmos comportamentos podem ser foco de atrito e de frustrações. Um exemplo dramático da importância do contexto social para o desenvolvimento cerebral foi investigado a partir do caso dos órfãos romenos adotados por famílias britânicas. Após a queda da cortina de ferro seguiu-se um período de intensa anomia social na Romênia. Várias crianças foram abandonadas em creches sem as mínimas condições materiais e humanas de atender suas necessidades. Ao serem adotadas por famílias britânicas muitas dessas crianças apresentam um quadro semelhante ao transtorno reativo da formação de vínculo, que muito se assemelha ao autismo. O acompanhamento longitudinal dessas crianças revelou que os déficits eram apenas parcialmente reversíveis através dos cuidados e carinho dispensados.

Vimos, assim, que a consideração da fase do ciclo vital em que o indivíduo e sua família se encontram desempenha um papel importante do ponto de vista diagnóstico e terapêutico. Um casal jovem com uma criança em idade pré-escolar coloca demandas distintas de pais de meia idade com um filho adolescente ou de pessoas adultas preocupadas com o envelhecimento cognitivo de seus pais. A neuropsicologia do desenvolvimento consiste, portanto, da subárea da neuropsicologia que enfoca os aspectos da correlação anátomo-clinica e da reabilitação a partir de uma perspectiva do desenvolvimento.

Um comentário: