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domingo, 3 de novembro de 2013

A Doutrina Neuronal



No mesmo "ano miraculoso" de 1838 em que Deiters e Remak publicaram seus trabalhos pioneiros, dois alemães, Mathias Jakob Schleiden (1804-1881), um botânico, e Theodor Schwann (1810-1882) (que tinha descrito pela primeira vez a bainha de mielina que envolve algumas fibras nervosas), propuserem uma teoria celular mais ousada e original: todos os tecidos orgânicos eram constituidos por células, e que, portanto, o sistema nervoso também assim seria organizado.

Avanços científicos no restante do século levaram à chamada doutrina neuronal, que se estabeleceu graças aos resultados de um trabalho notável desenvolvido pelo anatomista espanhol Santiago Ramon y Cajal (1852-1934), com base nas técnicas histológicas desenvolvidas pelo anatomista italiano Camillo Golgi (1843-1926). Ambos receberam o prêmio Nobel de 1906, o primeiro a ser concedido em neurociências.

Camillo Golgi foi o responsável por inventar uma técnica específica para corar neurônios, que ele denominou de "la reazione nera" (a reação negra). Ela consistia em fixar partículas de cromato de prata ao neurilema (a membrana do neurônio) através de uma reação química entre nitrato de prata e bicromato de potássio. Isto resultava em um depósito negro no corpo celular, nos axônios e nos dendritos, formando uma imagem extremamente clara e detalhada do neurônio e seus processos, contra um fundo amarelado. Pela primeira vez, portanto, os neuroanatomistas conseguiam enxergar e seguir onde que estas complexas ramificações iam e voltavam numa determinada área do sistema nervoso, e descrever com detalhe precioso a riqueza dessas ramificações.

Um retrato maravilhoso de complexidade emergia pela primeira vez, e Golgi foi capaz de explorar sua técnica em sua plenitude, descrevendo, por exemplo, que os axônios também podiam ter muitos colaterais, que possibilitavam uma divergência de conexões insuspeitada até então.

Golgi defendia a posição reticularista, no entanto, porque ele não conseguiu distingüir com toda a certeza se os neurônios não se fundiam uns com os outros. Ele escreveu “Pode ser certamente encontrada uma rede de filamentos muito extensa, que se anastomosa uns com os outros por toda a extensão da matéria cinzenta do cérebro.”

Uma das razões para isso é que a técnica original de Golgi era pouco confiável, pois não corava todos os neurônios de uma preparação, e não era efetiva com axônios mielinizados. Como a técnica era, por si, incapaz de destacar uma separação clara entre os neurônios conectados, Golgi naturalmente tornou-se um defensor ferrenho do reticularismo, o qual ele pensava fazer mais sentido quanto à maneira que o sistema nervoso operava. Entretanto, como veremos, logo começaram a aparecer evidências crescentes que essas anastomoses não existiam de fato, e que as células neuronais eram individualizadas, sem que houvesse continuidade por meio de fusão protoplasmática (protoplasma foi um termo cunhado por Purkinje). A evidência veio de três fontes:

1- Técnicas histológicas aperfeiçoadas, que foram obtidas por Santiago Ramón y Cajal, na Espanha, a partir de 1887. Cajal melhorou a técnica de Golgi e também usou cérebros mais jovens ou de pássaros, pois ambos são mais abundantes em fibras não mielinizadas. Cajal foi um cientista verdadeiramente prodigioso, sem dúvida o maior neuroanatomista do século XIX, e sua técnica refinada e extraordinários desenhos da organização do sistema nervoso logo o convenceram e a muitos outros cientistas, como veremos adiantes, que não havia evidência para a hipótese reticularista (embora ele tivesse, como bom cientista, mantido sua mente aberta para a mesma, até o começo do século seguinte). Em toda a parte no sistema nervoso, na medula e no cérebro, ele encontrava neurônios claramente individuais. Particularmente, terminações axonais em forma de cesta próximas a outros neurônios, convenceram Cajal que esta continuidade entre axônios e neurônios não podia existir.

2- Evidência embriológica: Wilhelm His, bem como Cajal, documentaram em 1886 que os dendritos e axônios de neurônios imaturos, observados em cérebros de embriões, cresciam progressivamente a partir do corpo celular. Portanto, a hipótese de um contato entre neurônios era mais provável do que uma anastomose, pois coisas que crescem separadas tendem a manter-se separadas. His sugeriu que "in última análise teremos que aceitar a ideia de que é possível a transmissão de estímulos sem continuidade direta".

3- Evidências da degeneração celular: Auguste-Henri Forel (1848-1931), um eminente cientista suiço, observou no mesmo ano que His (1886), que quando o corpo celular do neurônio morre ou quando um axônio é cortado, ocorre uma degeneração anterógrada no axônio remanescente distal à parte que morreu (também chamada de degeneração walleriana, em homenagem ao patologista que a descobriu, Waller), mas que ela não progride além da junção deste axônio com outros neurônios. Deste modo, é evidente que axônios de um neurônio e dendritos de outro são separados, pois do contrário a degeneração se espalharia por uma extensão maior da rede. Forel concluiu que"...em última análise a ramificação toma a forma de árvores extensamente divididas e entrelaçadas, mas não se achou anastomeses em nenhum lugar.”

As Contribuições de Cajal

Quando Cajal começou a investigar a estrutura fina do sistema nervoso em 1988, usando sua técnica de Golgi modificada, ele era praticamente desconhecido para o resto do mundo, principalmente porque ele optou por publicar seus resultados em espanhol, em uma revista que ele mesmo fundou e mantinha com recursos próprios. No entanto, logo ele percebeu que esse isolamento iria manter seu esplendoroso trabalho fora dos olhos de quem realmente interessava na neuroanatomia daquela época, que eram os cientistas alemães. Assim, ele traduziu alguns de seus artigos para o alemão, e passou a frequentar congressos internacionais a partir de 1889.

O seu trabalho brilhante e audácia nas conclusões chamou a atenção da comunidade internacional e logo conquistou vários adeptos, entre os quais os dois mais importantes: Rudolph Albert von Kölliker and Wilhelm von Waldeyer. Von Kölliker, que antes tinha sido um tenaz defensor da hipótese reticularista, converteu-se aos argumentos de Cajal a favor de neurônios como células independentes e passou a apoiar sua causa. Ele chegou a aprender espanhol, para traduzir os trabalhos de Cajal para o alemão. Finalmente, von Waldeyer escreveu uma revisão extremamente influente em 1891, na qual dava um fim à hipótese reticularista e declarava os princípios da doutrina neuronal, baseado nas conclusões de vários cientistas, como Forel, His e outros.

O trabalho pioneiro e extraordinário de Cajal, no entanto, estava presente em toda a parte.

Particularmente relevantes entre as propostas de Cajal, estava o que ele chamou de Lei da Polaridade Dinâmica, e na qual que afirmava que a propagação da corrente de ação era sempre na direção dos dendritos para os axônios, dentro de uma célula, e do axônio para os dendritos ou o corpo celular, entre duas células. Esta foi uma contribuição fundamental para a neurofisiologia, e é a base da organização funcional de todo o sistema nervoso, pelo menos em vertebrados.

A doutrina neuronal tem quatro predicados: 

1- O neurônio é a unidade estrutural e funcional do sistema nervoso;
- Os neurônios são células individuais, que não se comunicam com continuidade protoplasmática com outros neurônios, nem anatomicamente, nem geneticamente;
2- O neurônio tem três componentes: dendritos, soma (corpo celular) e axônio. O axônio pode ter várias arborizações, que fazem contato íntimo com os dendritos e o soma de outros neurônios;
3- A condução do estímulo ocorre do dendritos ao soma ao axônio, até as suas arborizações finais.

Entre muitas outras coisas, Cajal descobriu estruturas características em dendritos, aos quais ele denominou de "espinhas", por causa de sua aparência visual. Bem mais tarde, estas importantes estruturas foram explicadas como sendo parte do dispositivo receptor de sinapses dos dendritos, e que elas podem mudar em número e morfologia em resposta à função. Cajal foi quase clarividente em propor que o aumento do número de sinapses poderia ser um dos mecanismos do aprendizado e da memória

Por suas contribuições, Golgi e Cajal compartilharam o prêmio Nobel de 1906 . É interessante notar que seu discurso de aceitação, entretanto, Golgi, curiosamente, optou por ainda defender a hipótese reticularista, apesar de toda a evidência em contrário. Golgi estava ainda enganado, ao propor funções meramente nutritivas para os dendritos. Ele foi imediatamente contestado em todos esses pontos pelo discurso de Cajal!

Como resultado das extraordinárias contribuições feitas por Cajal à ciência, ele é colocado por alguns historiadores na mesma altura de Copérrnico, Vesálio, Galileu, Newton e Darwin. (Fonte: Cérebro & Mente)

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