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sábado, 6 de outubro de 2012

Um caso emblemático da neuropsicologia: Phineas Gage


Este caso do Rio de Janeiro nos reporta imediatamente ao famoso caso Phineas Cage. O espantoso caso de Phineas Gage, foi tão importante na história das ciências do cérebro, em particular da neuropsicologia, que mereceu atenção especial em todas as obras sobre neuropsicologia.
Gage trabalhava para a Estrada de Ferro Rutland & Burlington, onde era gerente na construção de um trecho da estrada, próximo à cidade de Cavendish, no estado de Vermont, Estados Unidos da América, não muito distante de Boston (Figuras 1 e 2). Tinha sob seu comando um grande número de trabalhadores, cujas funções eram o assentamento de trilhos da ferrovia. Era um trabalho muito difícil dada a constituição do terreno acidentado e rochoso. Para tornar o trajeto da ferrovia mais curto, eles tinham de construir um caminho mais reto por entre as rochas e, para tal, tinham de dinamitá-las e, em seguida, desobstruir o terreno para a instalação dos trilhos. Gage coordenava todas essas tarefas e era um gerente competente e dinâmico. Tinha um porte atlético, tinha boa resistência física, era inteligente, leal, trabalhador, extremamente responsável, um funcionário exemplar em todos os sentidos.

               
                                       Figura 1
                                 Figura 2


Figura 1. – Cavendish (Vermont), no círculo vermelho ao centro. Distante de Boston, Massachussetts, aproximadamente 22,5 quilômetros a noroeste e a 161 quilômetros de Albany, NY, a nordeste.

Figura 2. – Cavendish e suas cercanias, margeando o Rio Negro e comunicando-se com as cidades próximas por estradas de rodagem e ferrovia (em negro).

Gage era considerado pelos seus chefes como o homem mais eficiente e capaz a seu serviço. O trabalho requeria muita atenção e concentração, notadamente quando era chegado o momento de preparar as detonações de explosivos na rocha. O primeiro passo era fazer um buraco na rocha. O segundo era encher o buraco até a metade com pólvora, colocar o rastilho. Em terceiro, a pólvora era coberta com areia e, em seguida, era socada com uma barra de ferro numa sequência de pancadas. Por último, o rastilho tinha de ser acendido a uma distância segura para os trabalhadores. Geralmente, a explosão ocorria para dentro da rocha e, para que isso ocorresse a contento, a areia precisava ser bem socada. Caso isso não ocorresse, não haveria proteção para os trabalhadores, durante a explosão, que se projetaria para fora da rocha. A forma do ferro e o seu manuseio também eram importantes, a tal ponto que Gage mandara fazer uma barra somente para si, a qual manipulava com destreza. Sua barra tinha um comprimento de mais de um metro e um diâmetro de 2,5 centímetros. Uma das pontas era afinada para facilitar o trabalho de furar o buraco.  Ao cair da tarde do dia 13 de setembro de 1848, ao executar essas tarefas pela enésima vez, Gage se distraiu com o chamamento de um homem que estava atrás de si. A areia ainda não tinha sido colocada no buraco. Distraído, Gage começa a socar o buraco diretamente na pólvora enquanto olhava para trás. Logo surge uma faisca na rocha e acontece uma explosão violenta, com um estrondo que a todos atordoa. Após alguns segundos de confusão geral e, ao desvanecer a fumaça, todos vêm horrorizados que Gage tinha sido trespassado na cabeça pela barra de ferro. A barra tinha penetrado seu rosto pelo lado esquerdo, na altura da bochecha, e saído pelo alto do crânio, alguns centímetros atrás de sua testa, um pouco à direita. Mas estava consciente, porém atordoado e silencioso. Imediatamente foi socorrido pelos seus companheiros e colocado num carro de bois e, sentado, foi transportado para uma estalagem próxima, a cerca de um quilômetro. Gage saiu sozinho do carro e andou com uma pequena ajuda de seus subordinados. Imediatamente foi chamado o médico da cidade de Cavendish, Dr. John Martin Harlow. A esta altura, Gage já era capaz de falar algumas frases, mantendo sua lucidez. Logo, ele foi atendido por um colega mais novo de Harlow, o Dr. Edward Williams. Aqui está o relato que Williams fez, assim que chegou e viu Gage pela primeira vez:

Nessa altura, ele estava sentado numa cadeira na piazza (varanda) da estalagem do Sr. Adams, em Cavendish. Quando parei a carruagem, ele disse: ‘Doutor, tem aqui um trabaho que lhe vai dar o que fazer’. Reparei logo na ferida existente na cabeça, antes mesmo de descer da minha carruagem, sendo as pulsações do cérebro claramente visíveis; a ferida tinha também um aspecto que, antes de eu ter examinado a cabeça, não consegui compreender de imediato: o topo da cabeça assemelhava-se, em certa medida, a um funil invertido; tal circunstância devia-se, descobri em seguida, ao fato de o osso estar fraturado em redor do orifício numa distância de cerca de cinco centímetros em todas as direções. Devia ter mencionado anteriormente que o orifício através do crânio e dos integumentos não andava longe dos quatro centímetros de diâmetro; as arestas desse orifício estavam reviradas e a totalidade da ferida apresentava-se como se um corpo cuneiforme tivesse passado de baixo para cima. O Sr. Gage, durante o tempo em que estive a examinar o ferimento, ia descrevendo aos circunstantes o modo como tinha sido ferido; falava de uma forma tão racional e mostrava-se tão disposto a responder às perguntas que lhe faziam, que lhe coloquei diretamente as minhas questões, em vez de as dirigir aos homens que o acompanhavam na altura do acidente e que agora nos rodeavam. O Sr. Gage relatou-me então algumas das circunstâncias, tal como a partir daí sempre as descreveu; e posso afirmar com segurança que nem nessa altura, nem em qualquer outra ocasião subseqüente, exceto numa, o deixei de considerar perfeitamente racional. A única ocasião à qual me refiro ocorreu cerca de quinze dias após o acidente, quando insistiu em me chamar John Kirwin; ainda assim, respondia corretamente a todas as minhas perguntas.

Phineas Gage teve uma recuperação absolutamente surpreendente pelo período em que ocorreu o acidente, quando não existiam antibióticos e os procedimentos neurocirúrgicos ainda eram muito primitivos. Segundo Henry J. Bigelow, professor de cirurgia em Harvard e que teve contato com o paciente e escreveu alguns trabalhos sobre ele, relatou que a barra de ferro que atravessou o crânio de Gage pesava 6 quilos, media um metro de comprimento e tinha aproximadamente três centímetros de diâmetro. A extremidade que penetrou o crânio foi moldada em forma de um cone de 21 centímetros de comprimento e a ponta tinha meio centímetro de diâmetro. Como esta barra de ferro foi encomendada a um ferreiro pelo próprio Gage, esse detalhe é que, para Bigelow, teria salvo a sua vida. Posteriormente, naquele mesmo dia, Gage foi atendido por John Harlow, que seria daí para a frente o seu médico. Harlow previu que haveria infecção e cuidou cuidadosamente para que a mesma não se generalizasse, utilizando curativos e limpeza diários com o emprego de produtos químicos, que indicustivelmente contribuíram para que a infecção ficasse circunscrita ao local. Relatou que houve febre alta e um abcesso que foi drenado com bisturi. A boa saúde física e a juventude de Gage contribuíram para sua rápida recuperação que ocorreu em dois meses. Ao fim deste tempo ele foi liberado do tratamento e voltou para suas atividades, tendo reassumido suas funções de gerente na obra da ferrovia. Mas, era outro homem.
Harlow havia assistido em 1842 a palestras sobre frenologia de Nelson Sizer, discípulo de Spurzheim. Esse conhecimento provavelmente fez com que se interessasse pelo caso de forma incomum para os médicos da Nova Inglaterra da época. Ele relatou, vinte anos após o acidente, que havia ficado intrigado com a recuperação de Gage, praticamente sem seqüelas físicas e neurológicas, como distúrbios de marcha, memória, linguagem, cálculo, orientação, etc. Havia perdido a visão do olho esquerdo, mas a do olho direito estava perfeita. O fato mais marcante percebido por Harlow foi uma perda do equilíbrio entre suas faculdades intelectuais e suas propensões animais. Harlow ressalta as mudanças na personalidade de Gage, que nada tinham a ver com o homem que fora anteriomente: tornara-se caprichoso, irreverente, falando palavrões e obscenidades, desrespeitoso para com seus colegas, intolerante e impaciente, não aceitava divergências, às vezes determinado e perseverante, outras vezes vacilante, fazia muitos planos para o futuro, mas não os colocava em prática. Nas palavras de Harlow: “Sendo uma criança nas suas manifestações e capacidades intelectuais, possui as paixões animais de um homem maduro”.
Numa carta, datada de 27 de novembro de 1848, John Harlow envia para o editor do Boston Medical and Surgical Journal um relato detalhado de suas observações sobre o caso Phineas Gage, carta que foi publicada logo em seguida. Em 1999, o Journal of Neuropsychiatry and Neurosciences, republicou a carta de Harlow, no que é considerado o mais famoso relato de caso da história das ciências do cérebro.
Em seu relato, ele descreve minuciosamente o quadro de saúde de Gage, das horas e dias que se seguiram ao acidente, como a infecção foi debelada, como o abcesso foi rompido, a recuperação surpreendente do paciente e sua posterior liberação para o retorno às suas funções habituais. Podemos hoje encontrar na Internet inúmeros sites dedicados a relatar, com profusão de fotos, mapas e relatos, a tragédia de Gage, como o site da Universidade Deakin, na Austrália, organizado por Malcolm Macmillan, da Faculdade de Psicologia, em Victoria, Austrália (site disponível em:

O site de Frederick Barker II, da Universidade Harvard é:


Um segundo relato foi publicado em 1850 por Henry J. Bigelow, professor de cirurgia na Universidade de Harvard. Bigelow enfatizou a falta de sintomas de Gage e disse que ele “estava praticamente recuperado em suas faculdades do corpo e da mente”. Devido à influência de Bigelow e sua descrença com o relatório de Harlow de 1848, o caso foi esquecido durante vinte anos (ver em: DAMÁSIO, A. (1996). O Erro de Descartes. Emoção, Razão e o Cérebro Humano. São Paulo. Companhia das Letras).
      A mudança na personalidade de Gage fora radical. Harlow, em 1868, publicou desta vez um trabalho mais extenso e completo sobre o caso no Bulletin of the Massachusetts Medical Society, “antes, era um homem de hábitos moderados e de considerável energia de caráter... tinha uma mente bastante equilibrada e era considerado, por aqueles que o conheciam, um homem de negócios astuto e inteligente, muito enérgico e persistente na execução de todos os seus planos de ação... Seus amigos observavam entristecidos que Gage já não era Gage” (Damásio, 1996). A consequência natural desta mudança é que Gage foi demitido de seu trabalho, já que seus superiores consideravam a mudança de sua personalidade tão importante que já não podiam permitir que ele continuasse com as mesmas funções.
Gage aceitou trabalhos, na região, em fazendas dedicadas à criação de cavalos. Como não tivesse persistência em suas atividades ou disciplina, logo foi dispensado de inúmeros empregos e assim foi mudando de empregos e passando a exercer atividades as mais diversas. Harlow comentou que Gage sempre arrumava algum trabalho para o qual não estava talhado. Logo, se interessou por apresentações de circos, muito comuns no Século XIX, junto com figuras bizarras. Exibiu-se no Museu de Barnum em Nova York (posteriormente esta empresa incorporou-se ao lendário Circo Barnum & Bailey que, até o Século XX, encantou multidões na América do Norte). Neste período, os grandes circos viviam de mostrar as desgraças humanas como se fossem objetos de exposição em museus: anões, a mulher mais gorda do mundo, o homem mais alto, o homem de maior queixo, o homem com cara de lobo (distrofias endócrinas), pessoas com pele de elefante ou portadoras de neurofibromatose. António Damásio compara esta situação como um espetáculo digno de um filme de Federico Fellini. Não satisfeito, inquieto e sem persistência como lhe ocorreria pelo resto de sua vida, Gage foi tentar a sorte viajando para a América do Sul onde, no Chile, trabalhou como cuteleiro e cocheiro em Santiago e Valparaiso.
Em 1859 sua saúde deteriorou-se e, em 1860, voltou aos Estados Unidos, tendo se mudado para São Francisco, onde foi morar com a sua mãe e irmã, casada com um comerciante bem sucedido na região. Trabalhou em fazendas e foi operário na baía sem sucesso e alternava períodos de trabalho com bebedeiras, brigas e confusões em áreas do meretrício. Logo, passou a apresentar convulsões epilépticas e, numa delas, que foi bastante prolongada, perdeu a consciência e entrou em quadro de “status epilepticus”, vindo a falecer em 21 de maio de 1861, aos 38 anos de idade. Não houve referência á sua morte nos jornais de São Francisco e foi enterrado em cova comum no cemitério local.
Harlow, influenciado pela frenologia e com aspirações acadêmicos (havia sido professor no Jefferson Medical College na Filadélfia), se interessou muito pelo caso, mas não sendo professor em nenhuma faculdade, não dispunha de laboratório de anatomia para estudos mais aprofundados. Ele tomara conhecimento das novas descobertas feitas por Broca, vindas da Europa. Mas Broca, além de neurologista era neuropatologista e conseguia, através de necrópsias dos cadáveres de antigos pacientes seus, como o caso de Mr. Leborgne,  estudar seus cérebros e fazer uma análise comparativa com a sintomatologia clínica dos mesmos. Harlow havia perdido contato com Gage e, provavelmente, o período político febril de antes da guerra civil americana tenha contribuído para que as notícias não o houvessem alcançado. Ele só soube da morte de Gage cinco anos após. É até possível que tenha ficado abatido por não ter podido estudar aquele cérebro de uma pessoa que marcou tanto sua carreira como médico e investigador leigo. Essa pode ter sido a razão pela qual, após localizar os parentes de Gage, ter escrito à irmã deste, em São Francisco, pedindo autorização para a exumação do corpo para que o crânio pudesse ser recuperado e guardado para registro do caso em uma instituição científica. Segundo Damásio (1996), a irmã, seu marido e o médico da família (então presidente da câmara de São Francisco), assistiram à abertura do caixão e à remoção do crânio por um coveiro.
O ferro que o havia ferido havia sido colocado ao lado do corpo de Gage e foi igualmente recuperado e enviado para Harlow em Massachussetts, em 1867. O acesso de brilho científico e gesto extraordinário de preservação, trouxeram a Harlow, um médico modesto, mas com uma grande devoção pela ciência, um destaque que o colocou nos anais da história da medicina e o reconhecimento dos atuais cientistas do cérebro. A fama e a glória, somente lhe advieram no Século XX, muito após sua morte em 1907, quando o caso Gage voltou a despertar o interesse do mundo científico. Hoje, tanto o crânio como a barra de ferro estão juntos em Boston, expostos no Warren Anatomical Museum da Faculdade de Medicina da Universidade de Harvard (Figuras 3 e 4).

Figura 3 – Máscara mortuária e crânio de Phineas Gage. (Fonte: Warren Anatomical Museum, Francis A. Countway Library of Medicine, Harvard).

                                                             
                       

 
Figura 4 – Lado a lado a barra de ferro e crânio de Phineas Gage. (Fonte: Warren Anatomical Museum, Francis A. Countway Library of Medicine, Harvard).
        O caso de Phineas Gage é paradigmático em vários sentidos, num deles é que contribuiu para o ressurgimento dos estudos da frenologia, naquela época já bastante desacreditados, dando origem a novos estudos de localização cerebral de funções. Esse caso despertou também a atenção de cientistas que já estavam a utilizar os modernos estudos de neuroimagens funcionais, peça de resistência dos atuais estudos das ciências do cérebro. Entre 1848 e 1868, o caso de Cage não foi levado muito a sério pelos médicos norte-americanos, pois se acreditava então que ele estava completamente recuperado. Em trabalho muito interessante sobre essa questão, publicado pelo neurocirurgião norte-americano, Fred Barker II, em 1995, havia dois pontos de vista contraditórios acerca do caso Gage. Uma, do Dr. John Harlow, o médico que atendeu Gage, e a outra de Henry Bigelow, da Universidade Harvard. Harlow havia prometido, após sua carta ao Boston Medical and Surgical Journal, escrever outro trabalho, desta vez com mais detalhamento das transformações observadas na personalidade de Gage. Bigelow usou seu ponto de vista para atacar a frenologia e tentar desacreditá-la ainda mais. Sua teoria acabou por prevalecer durante vinte anos, pois ele era o principal estudioso a afirmar que Gage teria voltado às suas condições físicas e mentais normais. Ele havia aprendido que lesões nos hemisférios cerebrais não traziam nenhuma conseqüência intelectual e não considerava significativas as mudanças comportamentais de Gage. Embora o paradigma de Bigelow fosse inicialmente mais influente, as teorias de Harlow, mais próximas à realidade do que estava acontecendo, se sobressaíram após vinte anos, reforçando os seguidores das teorias da localização cerebral. Sua versão do caso foi usada pelo grande fisiologista britânico David Ferrier como peça chave da moderna teoria da função do lobo frontal, sendo assim que o caso é hoje lembrado, motivo pelo qual entrou de forma imortal para a história (Barker II, 1995).
Houve vários estudos que tentaram reconstituir a rota de passagem da barra de ferro pelo cérebro de Gage. Essas reconstituições têm importância capital na compreensão das verdadeiras áreas lesadas e de quais consequências lhe trouxeram o que é fundamental para se entender as diversas áreas do lobo frontal com suas respectivas funções específicas. Numa notável relação dos mais importantes experimentos descritos na literatura e levantados por Macmillan (2009) podemos citar os seguintes:
1-   Harlow e Williams, os dois médicos a ver Gage no dia do acidente, nada relataram de específico sobre a entrada da barra sob o arco zigomático ou do dano da base, mas Harlow foi incisivo ao descrever que o buraco de saída do ferro se deu na junção das suturas coronal e sagital, e na linha mediana. Phelps, que examinou Gage seis semanas depois, calculou que o ponto era algo em torno de 1,27 centímetros em frente à junção e de 2,54 centímetros à esquerda da linha média (Macmillan, 2009).
2-   Bigelow aparentemente não chegou a nenhuma conclusão após seu exame de Gage em 1849, um ano após o acidente, mas quando fez buracos em um crânio de demonstração, para mostrar que a passagem era possível, ele pode ter arbitrariamente colocado o centro do buraco na base a 2,54 centímetros de sua linha média, e o da saída na frente da junção e à direita da linha média. As diferenças não foram resolvidas quando o crânio de Gage foi trazido para Massachussetts em 1868.
3-   Harlow, em seu segundo trabalho de 1868, calculou a entrada do ferimento na base do crânio a 3,175 centímetros da linha média. Ele estava agora um tanto em dúvida sobre a trajetória por onde a barra saiu, dizendo somente que foi na frente da junção dos ossos frontais e na linha média.
4-   Eugene Dupuy usou as descrições de Jackson de 1870, e possivelmente as fotografias do catálogo do Warren Museum, para concluir que a barra emergiu frontalmente e à esquerda da linha média. Mais tarde, após ver o crânio diretamente, ele parecia manter a opinião de que o ponto do lado esquerdo era a área de saída, mas agora com uma pequena mudança para o lado da junção dos ossos frontais.
5-   David Ferrier, ao replicar a crítica de Dupuy sobre seu trabalho de localização, primeiro considerou o ponto de vista de Bigelow sobre o ponto de entrada na base do crânio como sendo muito distante, à esquerda da linha média, e o ponto de saída muito frontal anterior e muito mais à direita. Em uma importante discussão posterior ele omitiu a menção a um ponto de saída; era quase como se estivesse tentando determinar uma saída a seu modo (Macmillan, 2009).
6-   Cobb preparou um esboço em 1940 na base de um exame virtual do crânio. Ele sugeriu que o ferimento de saída se deu entre os ossos frontais e que alguma lesão do lado direito tinha sido produzida.
7-   Em 1982, Kenneth L. Tyler da Universidade do Colorado e do Centro das Ciências da Saúde e seu pai H. Richard Tyler, da Faculdade de Medicina de Harvard, concluíram um estudo com tomografia computadorizada, no qual somente uma trajetória poderia ser determinada e na qual a barra teria emergido de um local específico. Ele incluiu a área de destruição total, de forma que a pequena área à direita da linha média demarcava o limite extremo da lesão. 
8-   Em 1994, Hanna Damásio, Albert Galaburda, Thomas Grabowski e R. Frank usaram método baseado em um computador mais complexo. Inicialmente, localizaram o ponto mais provável no topo do crânio e identificaram outros possíveis pontos de saída em volta dele. Todos esses pontos mediam a metade do diâmetro das margens do que eles chamaram a área de lesão total do osso, mas no caso excluíram a dobra de trás. Então, projetaram possíveis trajetórias destes pontos frontais do lado direito, através do centro do buraco até a base onde se localiza a área de entrada sob o osso da face. Cada trajetória possível era examinada, comparada e feita uma compatibilização com as lesões anatômicas conhecidas, sendo que sete trajetórias foram consideradas viáveis. Ao exame mais aprofundado, duas delas foram rejeitadas, deixando cinco para serem analizadas e comparadas com a lesão cerebral. Uma peculiaridade notável dos pontos de saída, gerada pelas cinco trajetórias observadas por Hanna Damásio e seus colaboradores, é que todas elas caminham para a direita da linha mediana e em direção à frente da junção dos ossos frontais como se a barra de ferro emergisse sob a dobra frontal não danificada (Macmillan, 2009) (Figura 8.5).
                                                              
Figura 5 – Reconstituição da trajetória da barra realizada por Hanna Damasio e colaboradores em 1994.
9-   O último estudo importante feito recentemente no crânio de Gage, no qual se utilizaram tecnologias ultra-modernas de computação gráfica em anatomia, foi o trabalho de Ratiu e Talos (2004), quando foram feitas reconstruções computadorizadas em três dimensões do crânio baseadas em finas lâminas de imagem por tomografia computadorizada. Com a utilização de um algoritmo de computador, um modelo tridimensional de cérebro normal foi gerado por RNM que foi sobreposto ao modelo do crânio. Os achados radiológicos foram correlacionados com os dados clínicos anotados por Harlow. Os autores concluíram que desde que o tamanho da lesão no osso no local de entrada na base do crânio era a metade do tamanho do diâmetro do projétil, e dados os padrões das linhas de fratura, o processo zigomático da maxila esquerda foi fraturado em continuidade com a órbita. Isto permitiu que o lado esquerdo da face girasse lateralmente, permitindo assim a passagem do projétil. A lesão cerebral foi necessariamente limitada ao lobo frontal esquerdo e poupou o seio sagital superior, caso contrário, a sobrevivência de Gage não seria possível dada a certamente fatal hemorragia maciça que teria ocorrido, assim como embolia por ar, ou ambas. Como nada disto ocorreu, a vida de Gage foi poupada (Figura 8.6).

Figura 6 – Reconstituição do trajeto da barra realizado com tecnologia atual. (Fonte: Ratiu & Talos, 2004).

Essas diferenças de interpretação sobre a passagem da barra de ferro pelo crânio de Gage naturalmente levaram a diferentes pontos de vista sobre quais partes do cérebro de Gage foram lesadas (Macmillan, 2009). Colocado de forma simplificada, quanto mais para a esquerda da linha média da base e quanto mais para a direita da linha média do topo, mais o lobo frontal direito estaria envolvido. De forma semelhante, quanto mais o ponto de saída for colocado em frente à junção coronal e sagital, maior será o envolvimento frontal; se colocado para trás, a lesão frontal seria menor.
                                                    
Figura 7 – À esquerda a figura esquemática feita por Harlow, em 1868, mostrando um ângulo da penetração da barra em Gage, com a saída na região da intersecção frontal mais posterior. À direita o ângulo como proposto por Hanna Damásio e colaboradores, em 1994, mostrando como uma pequena mudança na angulação da penetração da barra pode afetar áreas diferentes do lobo frontal, desta vez com a saída em área frontal mais anterior e atingindo o seio sagital. (Fonte: www.brown.edu/Research/Memlab/py47/ diagrams.html).

Macmillan (2009) faz uma síntese das mais diferentes opiniões acerca das lesões no crânio de Gage. Vamos ver cada uma e as dificuldades que foram surgindo no decorrer dos anos com tais discrepâncias: Harlow definiu que somente o hemisfério esquerdo tinha sido atingido e que o direito estava intacto. Bigelow foi igualmente claro de que houve somente lesão do lado direito. Dupuy aceitou que a trajetória foi direcionada para a esquerda, mas colocou-a em direção menos frontal anterior, sugerindo que a área motora posterior e áreas da linguagem tinham sido destruídas. Mas Gage não teve comprometimentos motores ou afasia e isso foi uma evidência contra os argumentos anti-localizacionistas de Dupuy. Ao rebater, Ferrier mostrou conclusivamente, com justiça, que a passagem não foi tão posterior e que ambas as áreas foram preservadas. Também concluiu que a única lesão foi do hemisfério esquerdo, conclusão esta que não foi contestada por mais de 70 anos. O diagrama de Cobb, o primeiro das modernas “reconstruções”, revelou dano semelhante ao proposto por Bigelow: ambos os hemisférios estavam envolvidos com maior lesão no esquerdo do que no direito. Esta conclusão, embora menos detalhada, é amplamente congruente com os Tylers, pai e filho. Quando Hanna Damásio e seus colaboradores simularam a passagem da barra de ferro, através de cinco trajetórias selecionadas através de um modelo tridimensional do cérebro de Gage, eles observaram serem as lesões até mais frontais e mais à direita. Por fim, Ratiu e seus colaboradores concluíram que a lesão foi limitada ao lobo frontal esquerdo, não se estendendo ao lado direito, e não afetou o sistema ventricular com seus vasos sanguíneos vitais dentro do crânio, conclusão esta que parece ser a mais provável correta reconstrução da lesão.

Nota: para saber mais, consulte o capítulo 8 de: CORRÊA, Antônio Carlos de Oliveira. Memória, aprendizagem e esquecimento. A memória através das neurociências. Rio de Janeiro. Atheneu, 2010.

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