Somos aquilo que recordamos e também... o que esquecemos.
O neurocientista Iván Izquierdo, ganhador do Prêmio
Almirante Álvaro Alberto do CNPq, afirma que excesso de informações e ruídos da
nossa sociedade vem afetando a saúde mental.
Por quê precisamos inibir ou esquecer certas lembranças para
poder viver bem? Nossa capacidade de armazenar memórias é saturável ou não? E
por quê muitas vezes temos dificuldade de lembrar coisas consideradas
importantes, mas memorizamos com certa facilidade piadas, banalidades e músicas
que nem gostaríamos de lembrar? Decidido a desvendar estes e outros tantos
mistérios da biologia da memória, o neurologista Iván Izquierdo, reconhecido
como um dos maiores pesquisadores do mundo nesta área, vem desenvolvendo há
mais de 45 anos, estudos científicos com o intuito de entender como funcionam
os mecanismos deste complexo labirinto da memória.
Sabe-se que a memória é uma intrigante faculdade mental que
nos permite registrar, armazenar e manipular as informações obtidas através de
experiências vividas. Geralmente esta nos remete ao "passado", pois
tudo que faz parte da memória já ocorreu, porém a memória também compõe o nosso
presente, pois é com esta capacidade que interagimos com o mundo e com os
outros. Sem esta função nós não iríamos identificar nada, ou melhor, não
teríamos sequer noção de identidade, já que para saber o que somos é preciso
saber o que fomos.
Esquecer para viver
Para o especialista Iván Antônio Izquierdo, coordenador do
Centro de Pesquisas da Memória da Pontifícia Universidade Católica do Rio
Grande do Sul, a memória é tão imprescindível ao homem quanto o esquecimento de
certos dados, fatos ou acontecimentos. Em seu livro "A Arte de
Esquecer", o pesquisador pontua ser necessário "apagar" algumas
lembranças para nosso bem estar.
"De fato, é preciso esquecer, ou pelo menos manter
longe da evocação certas lembranças que nos perturbam, como aquelas de medos,
humilhações, desencantos amorosos e outros maus momentos. Já pensou se nos
lembrássemos de todos os nossos fracassos? Passaríamos metade da vida nos
remoendo. Para nossa paz de espírito, por meio de um mecanismo de autoproteção,
o cérebro simplesmente inibe determinadas memórias, um fenômeno que os
psicanalistas chamam de repressão. E isso ocorre o tempo todo, mesmo sem
percebermos", afirma.
O cérebro humano, apesar de ser fantástico processa e
armazena informações de forma limitada. Para reter novos dados a mente precisa
de intervalos de descanso e também deixar de lado memórias supérfluas. Seria
incrível caso nos lembrássemos de cada palavra, som, gesto, imagem, cheiro ou
cada sensação que passa ao longo das nossas vidas, porém nosso cérebro não
consegue armazenar tantos dados assim.
Para Izquierdo, a arte de esquecer é um dos fenômenos mais
importantes da memória, já que possibilita a mente abrir novas janelas para
abarcar mais informações. "Se nos lembrássemos de tudo, não teríamos como
lembrar ou aprender coisas novas, já que existem memórias que nos impedem de
adquirir outras novas ou lembrar de outras antigas, mais importantes, por isso
é preciso que a mente elimine lembranças consideradas desnecessárias ou
reprimir algumas delas", afirma.
O pesquisador pontua ainda a importância dos intervalos de
descanso da mente para recompor a capacidade de absorção do conhecimento.
"Sabe-se que o ser humano apresenta oscilações em sua capacidade de
atenção, cujas ondas duram aproximadamente noventa minutos. Logo após absorver
um certo número de informações consecutivas, dependendo da densidade,
precisamos de um descanso para metabolizar tais dados", ressalta.
Emoção e suas marcas
Todo mundo se lembra do que estava fazendo quando morreu
Ayrton Senna, mas porque será que ninguém se lembra do que fazia algumas horas
antes do ocorrido? Provavelmente as pessoas se recordam do momento porque se
emocionaram com o infeliz fato, mas não se lembram do que fizeram horas antes
da morte, pois estas lembranças não tocaram seus sentimentos. O neurocientista
explica que isto ocorre, pois a memória fixa muito melhor emoções do que fatos,
já que as vias nervosas são extraordinariamente reguladas por emoções e
sentimentos.
"A emoção é acompanhada pela descarga de dopamina e de
noradrenalina em certos lugares do cérebro, que se incorporam na memória.
Então, toda a vez que, por algum motivo, essas substâncias forem liberadas e se
mantiverem no cérebro, a tendência é lembrar de coisas que apreendemos sob a
influência delas". Segundo ele, é por este motivo que memorizamos com
maior facilidade assuntos que gostamos, recordações que mexem com as nossas
emoções, ou mesmo besteiras que nos chocam. "Uma besteira apreendida sob
emoção será melhor lembrada que uma genialidade apreendida com
indiferença", declara Izquierdo.
Mundo esquizofrênico
Por mais que a memória humana seja muito ampla e resistente,
o especialista afirma que a nossa memória atualmente trabalha no limite,
principalmente por causa do excesso de informações e ruídos da nossa sociedade.
"Há 90 anos, o fundador da Neurociência moderna, Santiago Ramon y Cajal já
se queixava que o excesso de estímulos e de informação tornava a vida difícil e
em pouco tempo a tornariam impossível, pelas rádios a galena, os carros, os
ônibus e seu barulho, etc. Noventa anos se passaram e hoje estamos vivendo no
meio da balbúrdia generalizada, somos bombardeados por informações, vindas da
televisão, dos aviões, computadores, ipod, ipad e outras coisas mil. Até agora
não chegamos ao limite do que nossa memória de trabalho pode suportar, porém já
percebemos que todo este ruído vem afetando e muito nossa saúde mental",
diz.
Em seu livro "Silêncio, por Favor", Izquierdo
defende a necessidade de escapar muitas vezes deste ambiente cheio de ruídos
para conseguir pensar e articular-se com profundidade. "O ruído não é só
auditivo, é visual, linguístico e multisensorial. O ruído não nos deixa
distinguir os sinais que realmente nos interessam e por isso nos incomoda.
Afirmo que não são os estímulos em si que nos perturbam, pois os humanos estão
ai para receber, analisar, filtrar e guardar informações, o problema é que
estamos construindo um mundo no qual o principal hoje é o ruído e não os
sinais".
Para ele, as pessoas vêm absorvendo desenfreadamente tantos
códigos, valores, ícones e imagens que acabam por não conseguir pensar com
profundidade em quase nada, o que atrapalha paralelamente a memorização, a
percepção e a sensibilidade. Nesse sentido, Izquierdo afirma que é preciso
selecionar os sinais em meio a tantos ruídos, que só poluem nossa mente.
"Temos que discriminar informação de ruído, separar o joio do trigo, tanto
para evitarmos absorver coisas que não valem a pena ser evocadas, saturando o
cérebro de mediocridades, como também obtermos mais qualidade de vida, já que
teremos mais tempo para fazer o que realmente importa, como, por exemplo, amar,
pensar, ser nós mesmos", finaliza.
Autor de 11 obras e mais de 600 artigos científicos sobre a
biologia da memória, Izquierdo foi agraciado este ano com a mais importante
honraria em ciência e tecnologia do Brasil, o Prêmio Almirante Álvaro Alberto
para Ciência e Tecnologia. Médico e pesquisador argentino, Izquierdo obteve
nacionalidade brasileira em 1981, e fez grandes descobertas, como os principais
mecanismos moleculares da formação, evocação, persistência e extinção das
memórias, a dependência de estado endógena, a separação funcional entre as
memórias de curta duração e longa duração.
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