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sábado, 29 de março de 2014



O amigo imáginário

 
 
 
 
 
As crianças, criativas por natureza, usam e abusam da imaginação no seu mundo lúdico até mesmo para “criar” amigos imaginários, o que deixa muitos pais de “cabelos em pé”. No entanto, esse fenômeno, que surge principalmente entre 3 e 7 anos, não é tão raro.
 
Os amigos imaginários são construções da cultura lúdica das crianças, que manifesta a reprodução e interpretação das interações que as elas vivenciam cotidianamente. O mundo de “faz-de-conta” se torna a expressão clara e íntima dos seus mundos, transportando consigo conhecimentos, preocupações, anseios, desejos, crenças, vivências e que permitem que as crianças criem, experienciem e conduzam diferentes papeis simultaneamente, adaptando a diferentes pontos de vista, experimentando diferentes emoções, controlando e conduzindo o seu universo simbólico particular.

Ter um amigo imaginário, ao contrário do que se pensa, não é exclusividade de crianças mais solitárias não. Eles estão presentes na maioria das infâncias, pois antes de ter um amigo de carne e osso, a criança precisa treinar a experiência da amizade. Se as ações forem simuladas antes de serem realizadas, o desafio de conviver é facilitado.
 
Geralmente, amigos imaginários tomam forma a partir do terceiro ano de vida, quando já é possível diferenciar entre o eu e o outro, já que, por volta dos 3 anos, não há mais confusões entre pessoas reais e inventadas. Amigos imaginários costumam surgir assim que passamos a ter algum domínio da linguagem oral. Seja para organizar pensamentos, seja para se entreter, a criança desata a falar consigo mesma. Filhos únicos e primogênitos são mais propensos a esse tipo de comportamento, já que tendem a passar os primeiros anos de vida sem um companheiro real de sua faixa etária por perto.
 
Mas os pais podem respirar aliviados, pois todos os estudos sobre esse fenômeno chegam ao mesmo resultado: não há motivo para preocupações! Os amiguinhos imaginários têm sido estudados de forma intensiva há muito tempo, e todos os estudiosos concordam que os amigos imaginários estimulam o desenvolvimento das crianças, que podem suprir eventuais lacunas afetivas e ajudam na elaboração de questões psíquicas.
 
Para os mais novos, o amigo “de mentirinha” é quase sempre um companheiro de brincadeiras, que pode estar “presente” também à mesa na hora das refeições, ser chamado pelo nome e não raramente acompanha a criança durante todo o dia. Não raro também, pais e professores incomodam-se com a nitidez com que as crianças parecem ver seus amiguinhos. Mas os pequenos sabem muito bem que seus parceiros não são reais e que só existem em sua imaginação. Ou seja, essas criações psíquicas podem ser claramente diferenciadas de fantasias patológicas, que ocorrem, por exemplo, nas psicoses. A criança nunca se sente dominada pelo amigo que criou – pelo contrário, pode modelar, modificar e manipular sua invenção como quiser. Pode também determinar a duração desse “relacionamento” e quando perguntamos a fundo, a criança costuma concluir que sente a presença do amigo, mas não exatamente o enxerga.
 
Pleitear um lugar à mesa costuma ser uma forma de exigir que a família o reconheça, mas os pais, muitas vezes, não sabem como agir nessa situação, se apoia ou não a fantasia. Freud, pai da psicanálise e Piaget, papa da pedagogia, defendiam que, por via das dúvidas, era melhor que o companheiro invisível participasse do jantar.
 
Ao descobrir, os pais devem aceitar e entrar na brincadeira, sem se preocupar ou interferir. É melhor tratar tudo com naturalidade, pois é uma fase transicional, que ficará para trás quando o vínculo com o mundo externo estiver mais consolidado e for possível ter experiências seguras com um amigo real. Os pais nunca devem ignorar os relatos do filho. Só é preciso ficar de olho no que fala e faz. Amigos imaginários são importantes, mas jamais devem ser a relação prioritária.
 
É um erro repreender a criança ou dizer abertamente que seu amigo é fruto da imaginação, só vai deixar a criança confusa e com tendências ao isolamento ou envergonhada, mexendo muito com sua autoestima. Passar a mentir pode ser a saída quando os pais não aceitam o amigo invisível. Porém, também é um engano incentivar a relação invisível. A criança pode crer que a voz do amigo tem mais repercussão no ambiente familiar que a sua própria e corre-se o risco de que ela se sinta invadida em seu processo de criação. O espaço da fantasia deve surgir de forma espontânea, porque o filho demonstra interesse, e não por uma insistência da parte dos pais.
 
Os amigos inventados, porém, podem surgir quando a criança tem dificuldades em se submeter às regras dos adultos. Então o parceiro virtual simplesmente se permite fazer aquilo que é proibido a seu criador. Obviamente, os novos amigos são os culpados quando os pais descobrem a lata de bolachas saqueada ou são vítimas de alguma traquinagem. Muitas crianças até mesmo punem seus cúmplices invisíveis pelos delitos – o que naturalmente não impede os amigos de voltar a se portar mal. No entanto, quando o amigo imaginário passa a ser um inimigo imaginário, que incita atitudes ruins e fora do padrão, está na hora de levar imaginador e imaginado para o psicólogo, ou pelo menos para o serviço de orientação da escola.
 
Mas na maioria das vezes, se o acompanhante imaginário cumpriu sua função, ele aparentemente não só é deixado de lado, mas também é esquecido – um sinal de que as crianças conseguiram dar mais um passo em seu desenvolvimento de forma criativa.
 
Geralmente, a criança deixa os amigos imaginários assim como esquece os amigos da escola antiga. Sem se dar conta, conversa cada vez menos com eles até que caem no esquecimento - a ponto de alguns nem se lembrarem que um dia tiveram um companheiro invisível. Por isso mesmo, ficar o tempo inteiro interrogando a criança para saber se o tal fulano que não existe ainda existe só vai atrapalhar o processo de desapego e esquecimento.
 
 
*Ada Melo é psicóloga formada pela PUC Minas, em 2010 e especialista em MBA pela UNA, em 2012. Atua nas áreas clínica e organizacional pela abordagem psicanalítica. É colunista da Rede Psicoterapias, onde escreve às terças sobre infância e adolescência.
 
Contato: ada_psique@yahoo.com.br

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