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quinta-feira, 27 de dezembro de 2012

Que doença é essa?

O caderno de Joãozinho


Joãozinho era um dos alunos mais inteligentes da escola onde estudava, no município de Jequié, interior da Bahia. Há seis meses atrás, logo após completar 9 anos de idade, Joãozinho começou a apresentar problemas na escrita. 
Tido como dono de um dos cadernos mais caprichados da turma, Joãozinho, que era canhoto, começou a escrever verdadeiros “garranchos”. Engraçado que, ao tentar escrever com a mão não dominante, as palavras pareciam até mais legíveis em alguns momentos. Fato é que Joãozinho piorou o desempenho escolar, as notas caíram, preocupando a professora. Durante as aulas de educação física, os colegas começaram a isolá-lo por conta das frequentes quedas. O quadro progrediu lentamente; em 40 dias, Joãozinho já acordava toda manhã queixando-se de dores de cabeça difusas, eventualmente, associadas a vômitos. Nesse período, passou também a ser motivo de chacota para os colegas: falava como se estivesse bêbado. Foi então que sua mãe decidiu levá-lo a uma consulta médica.
DICA 1: Esse é o caderno de Joãozinho (acima).
DICA 2: Joãozinho realizou uma fundoscopia, exame no qual se utiliza um oftalmoscópio para avaliar a retina e as demais estruturas do fundo dos olhos. Foi diagnosticado velamento e elevação das margens das papilas ou, se preferir, dos discos de ambos os nervos ópticos. Tal sinal denomina-se papiledema e relaciona-se com um aumento da pressão intracraniana.
DICA 3: Durante a avaliação da marcha de Joãozinho, o médico notou que ele andava de maneira instável, com os pés distantes um do outro e desviados lateralmente. Ao tentar se locomover na direção do examinador, Joãozinho cambaleava para o lado esquerdo, tendo que ser amparado para não cair.
ÚLTIMA DICA: Parte dos sintomas foi causada por uma hidrocefalia obstrutiva, que ocorreu com a progressão da doença de base.


            DISCUSSÃO:
Joãozinho, um garoto inteligente e aplicado, que foi gradativamente perdendo o seu bom aprendizado na escola. A educação formal no mundo moderno tem importante valor sociocultural. O bom desempenho escolar é indicativo de futuro sucesso social. Nesse contexto, o mau desempenho escolar pode ser definido como um rendimento escolar abaixo do esperado para determinada idade, habilidades cognitivas e escolaridade, e deve ser visto como um sintoma relacionado a várias etiologias. Ressalta-se ainda que, independentemente da etiologia, o mau desempenho escolar resulta em problemas emocionais (baixa autoestima, desmotivação) e preocupação familiar, além de repercussão em diversas esferas: individuais, familiares, escolares e sociais. Diante de uma criança com essa suspeita, é fundamental buscar a causa e, consequentemente, traçar o melhor tratamento individualizado. As causas são variadas, podendo ser decorrentes de dificuldades pedagógicas propriamente ditas (problemas no ensino, condições socioculturais desfavoráveis e pouco estimuladoras), como também em função de patologias e transtornos clínicos associados (transtornos da leitura, da escrita, da matemática, transtorno do déficit de atenção e hiperatividade (TDAH), transtornos do desenvolvimento de coordenação (TDC), transtornos neuropsiquiátricos, patologias neurológicas e outras condições médicas em geral). Joãozinho foi vítima de uma patologia neurológica adquirida: o astrocitoma pilocítico cerebelar.
Em relação aos sintomas
O que podemos concluir em relação aos sintomas apresentados por Joãozinho? O primeiro sinal apresentado na estória foi uma dificuldade para escrever com a mão dominante, a esquerda. Quando analisamos o caderno de Joãozinho, notamos que sua escrita era irregular, hesitante, angulosa, desigual, ora muito carregada ora demasiado leve e havia uma tendência para a macrografia. Tal escrita é típica de lesões cerebelares hemisféricas. Algo bastante relevante no caso clínico postado é a ordem cronológica em que os sintomas apareceram; esta nos permitirá topografar onde surgiu a lesão num primeiro momento e como ela progrediu. Uma análise importante a ser feita é que Joãozinho não apresentava fraqueza na mão, apenas uma incoordenação durante um movimento específico – a escrita –, o que também favorece o diagnóstico de uma lesão cerebelar hemisférica, no caso, do mesmo lado do sintoma, à esquerda.
As síndromes cerebelares em humanos podem ser divididas em dois grandes grupos: a síndrome da linha mediana e a síndrome do hemisfério cerebelar. No primeiro caso, está acometido o arquicerebelo (lobo floculonodular). Os sintomas principais são anormalidades da postura e da marcha, variando de ligeiro alargamento da base ao caminhar à incapacidade total; ilustram o quadro indivíduos com degeneração cerebelar provocada pelo álcool e crianças portadoras de um tumor primitivo e geralmente agressivo, o meduloblastoma. Esse tumor quase sempre se origina da parte posterior do verme e manifesta-se pela marcha instável; por vezes os pais levam a criança ao médico queixando-se das constantes quedas. Já as lesões hemisféricas produzem ataxia apendicular e perturbação da coordenação das extremidades corporais do mesmo lado lesionado, mais do braço que da perna. O exame neurológico evidenciaria dismetria (incapacidade de estimar a amplitude do movimento voluntário), dissinergia (decomposição do movimento), disdiadococinesia (incapacidade de realizar movimentos sucessivos rápidos), tremor de intenção, hipotonia muscular, disartria (fala “escandida”) e, eventualmente, nistagmo (a fase rápida é para o lado da lesão). São exemplos os astrocitomas cerebelares, a esclerose múltipla e o acidente vascular cerebelar. 
Algumas condições afetam difusamente o cerebelo, causando alterações da linha mediana e de ambos os hemisférios. Os doentes podem ter nistagmo, ataxia da marcha e do tronco e incoordenação apendicular. Dentre as causas dessa síndrome pancerebelar, citamos algumas drogas, síndromes atáxicas espinocerebelares hereditárias, toxinas, a degeneração paraneoplásica e grandes lesões tumorais.
Joãozinho apresentou nos últimos meses um quadro que inicialmente contemplava uma síndrome do hemisfério cerebelar esquerdo. Com a progressão da lesão, houve acometimento das estruturas medianas provocando um quadro postural e atáxico de marcha; foi quando começou a ter episódios de quedas frequentes. Posteriormente, o quadro piorou e Joãozinho começou a apresentar uma síndrome de hipertensão intracraniana (cefaleia matinal, vômitos e papiledema). Provavelmente, a lesão inicial ganhou novas proporções e passou a comprimir o IV ventrículo, ocasionando hidrocefalia obstrutiva e aumento gradativo da pressão intracraniana.
Em suma, o raciocínio para o caso do Joãozinho deve partir do pressuposto de que havia uma lesão no hemisfério cerebelar esquerdo, expansiva, a qual evoluiu com compressão do verme cerebelar, finalmente, colabando o IV ventrículo.

Neuroanatomia do cerebelo.
http://neurocienciayplasticidadcerebraluned.blogspot.com.br/
O diagnóstico diferencial dos tumores da fossa posterior
Os tumores do sistema nervoso central só não são mais comuns que as leucemias, na faixa etária pediátrica. Em se tratando de tumores sólidos, aquelas lesões são as mais incidentes. De todas as neoplasias encefálicas em crianças, 50% estão localizadas na fossa posterior, mesmo que esta contemple apenas 25% de todo o conteúdo intracraniano. É comum a associação de lesão expansiva na fossa posterior e hidrocefalia não comunicante, o que torna o procedimento de derivação liquórica habitual nesses casos.
Existem quatro tipos de tumores na região supracitada que merecem destaque: o meduloblastoma, o astrocitoma cerebelar, o ependimoma e o glioma de tronco. Quando se fala em síndrome do hemisfério cerebelar pura, o astrocitoma cerebelar deve ser questionado como uma primeira hipótese diagnóstica. Vale ressaltar que, uma vez suspeitando-se de um tumor do sistema nervoso, os métodos de neuroimagem são extremamente importantes. A tomografia computadorizada de crânio com contraste costuma ser o primeiro exame a ser solicitado, seguida de uma ressonância nuclear magnética. Esta, o exame de escolha para avaliar lesões na fossa posterior.
Os astrocitomas cerebelares
Quase sempre benignos, pouco invasivos, geralmente localizados em um hemisfério cerebelar. Histologicamente costumam ser pilocíticos e, eventualmente, fibrilares. Ocorrem na faixa etária dos 5-15 anos, com sinais clínicos de hipertensão intracraniana e síndrome cerebelar, conforme já discutido. Podem ser totalmente sólidos, cístico-sólidos, císticos com nódulo mural, císticos com captação de contraste em toda a parede do cisto e policísticos. Têm um bom plano de clivagem e não são rotineiramente muito vascularizados. Costumam captar contraste e ser hipo- ou isointensos em relação ao parênquima cerebelar nos exames não contrastados. Para diferenciar, os meduloblastomas, por exemplo, costumam ser hiperdensos nos exames não contrastados e restringir a difusão nas técnicas complementares de ressonância magnética; os ependimomas costumam apresentar calcificações e projeções para os espaços liquóricos.

Ressonância magnética T1 com contraste: astrocitoma pilocítico cerebelar.
http://anatpat.unicamp.br/rpgastropilo14.html
O que irá acontecer a Joãozinho?
Joãozinho primeiramente deverá ser tratado com corticóides e submetido a uma derivação liquórica, resolvendo o quadro urgente de hidrocefalia obstrutiva. Dentre as técnicas, pode-se utilizar a terceiroventriculostomia endoscópica, a derivação ventricular externa ou a válvula de derivação ventrículo-peritoneal. Logo que tratada a hipertensão intracraniana, seria programada a abordagem neurocirúrgica do tumor.
O tratamento dos astrocitomas cerebelares é basicamente cirúrgico. O objetivo é a excisão completa da lesão, entretanto, caso permaneçam fragmentos residuais, poderá optar-se pelo seguimento ambulatorial tendo em vista que o crescimento desses tumores é lento. Haveria o risco de sequelas, mas Joãozinho poderia sim evoluir para uma cura completa.
Fica então a dica para os profissionais das áreas da saúde, os educadores e todos aqueles que lidam com crianças que estão em idade escolar. Reconheçam os sinais de alarme e procurem a melhor solução técnica e social, individualizada para cada caso.
mindasks( fonte)

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