O caderno de Joãozinho |
Joãozinho
era um dos alunos mais inteligentes da escola onde estudava, no município de
Jequié, interior da Bahia. Há seis meses atrás, logo após completar 9 anos de
idade, Joãozinho começou a apresentar problemas na escrita.
Tido
como dono de um dos cadernos mais caprichados da turma, Joãozinho, que era
canhoto, começou a escrever verdadeiros “garranchos”. Engraçado que, ao tentar
escrever com a mão não dominante, as palavras pareciam até mais legíveis em
alguns momentos. Fato é que Joãozinho piorou o desempenho escolar, as notas
caíram, preocupando a professora. Durante as aulas de educação física, os
colegas começaram a isolá-lo por conta das frequentes quedas. O quadro
progrediu lentamente; em 40 dias, Joãozinho já acordava toda manhã queixando-se
de dores de cabeça difusas, eventualmente, associadas a vômitos. Nesse período,
passou também a ser motivo de chacota para os colegas: falava como se estivesse
bêbado. Foi então que sua mãe decidiu levá-lo a uma consulta médica.
DICA 1:
Esse é o caderno de Joãozinho (acima).
DICA 2:
Joãozinho realizou uma fundoscopia, exame no qual se utiliza um oftalmoscópio
para avaliar a retina e as demais estruturas do fundo dos olhos. Foi
diagnosticado velamento e elevação das margens das papilas ou, se preferir, dos
discos de ambos os nervos ópticos. Tal sinal denomina-se papiledema e
relaciona-se com um aumento da pressão intracraniana.
DICA 3:
Durante a avaliação da marcha de Joãozinho, o médico notou que ele andava de
maneira instável, com os pés distantes um do outro e desviados lateralmente. Ao
tentar se locomover na direção do examinador, Joãozinho cambaleava para o lado
esquerdo, tendo que ser amparado para não cair.
ÚLTIMA
DICA: Parte dos sintomas foi causada por uma hidrocefalia obstrutiva, que
ocorreu com a progressão da doença de base.
DISCUSSÃO:
DISCUSSÃO:
Joãozinho,
um garoto inteligente e aplicado, que foi gradativamente perdendo o seu bom aprendizado
na escola. A educação formal no mundo moderno tem importante valor
sociocultural. O bom desempenho escolar é indicativo de futuro sucesso social.
Nesse contexto, o mau desempenho escolar pode ser definido como um rendimento
escolar abaixo do esperado para determinada idade, habilidades cognitivas e
escolaridade, e deve ser visto como um sintoma relacionado a várias etiologias.
Ressalta-se ainda que, independentemente da etiologia, o mau desempenho escolar
resulta em problemas emocionais (baixa autoestima, desmotivação) e preocupação
familiar, além de repercussão em diversas esferas: individuais, familiares,
escolares e sociais. Diante de uma criança com essa suspeita, é fundamental
buscar a causa e, consequentemente, traçar o melhor tratamento individualizado.
As causas são variadas, podendo ser decorrentes de dificuldades pedagógicas propriamente
ditas (problemas no ensino, condições socioculturais desfavoráveis e pouco estimuladoras),
como também em função de patologias e transtornos clínicos associados
(transtornos da leitura, da escrita, da matemática, transtorno do déficit de atenção
e hiperatividade (TDAH), transtornos do desenvolvimento de coordenação (TDC), transtornos
neuropsiquiátricos, patologias neurológicas e outras condições médicas em geral).
Joãozinho foi vítima de uma patologia neurológica adquirida: o astrocitoma
pilocítico cerebelar.
Em relação aos sintomas
O que
podemos concluir em relação aos sintomas apresentados por Joãozinho? O primeiro
sinal apresentado na estória foi uma dificuldade para escrever com a mão
dominante, a esquerda. Quando analisamos o caderno de Joãozinho, notamos que
sua escrita era irregular, hesitante, angulosa, desigual, ora muito carregada
ora demasiado leve e havia uma tendência para a macrografia. Tal escrita é
típica de lesões cerebelares hemisféricas. Algo bastante relevante no caso
clínico postado é a ordem cronológica em que os sintomas apareceram; esta nos
permitirá topografar onde surgiu a lesão num primeiro momento e como ela
progrediu. Uma análise importante a ser feita é que Joãozinho não apresentava
fraqueza na mão, apenas uma incoordenação durante um movimento específico – a escrita
–, o que também favorece o diagnóstico de uma lesão cerebelar hemisférica, no
caso, do mesmo lado do sintoma, à esquerda.
As
síndromes cerebelares em humanos podem ser divididas em dois grandes grupos: a síndrome da linha mediana e a síndrome do hemisfério cerebelar. No
primeiro caso, está acometido o arquicerebelo (lobo floculonodular). Os
sintomas principais são anormalidades da postura e da marcha, variando de
ligeiro alargamento da base ao caminhar à incapacidade total; ilustram o quadro
indivíduos com degeneração cerebelar provocada pelo álcool e crianças portadoras
de um tumor primitivo e geralmente agressivo, o meduloblastoma. Esse tumor
quase sempre se origina da parte posterior do verme e manifesta-se pela marcha
instável; por vezes os pais levam a criança ao médico queixando-se das
constantes quedas. Já as lesões hemisféricas produzem ataxia apendicular e
perturbação da coordenação das extremidades corporais do mesmo lado lesionado,
mais do braço que da perna. O exame neurológico evidenciaria dismetria
(incapacidade de estimar a amplitude do movimento voluntário), dissinergia
(decomposição do movimento), disdiadococinesia (incapacidade de realizar
movimentos sucessivos rápidos), tremor de intenção, hipotonia muscular,
disartria (fala “escandida”) e, eventualmente, nistagmo (a fase rápida é para o
lado da lesão). São exemplos os astrocitomas cerebelares, a esclerose múltipla
e o acidente vascular cerebelar.
Algumas
condições afetam difusamente o cerebelo, causando alterações da linha mediana e
de ambos os hemisférios. Os doentes podem ter nistagmo, ataxia da marcha e do
tronco e incoordenação apendicular. Dentre as causas dessa síndrome pancerebelar, citamos algumas drogas, síndromes atáxicas
espinocerebelares hereditárias, toxinas, a degeneração paraneoplásica e grandes
lesões tumorais.
Joãozinho
apresentou nos últimos meses um quadro que inicialmente contemplava uma
síndrome do hemisfério cerebelar esquerdo. Com a progressão da lesão, houve
acometimento das estruturas medianas provocando um quadro postural e atáxico de
marcha; foi quando começou a ter episódios de quedas frequentes.
Posteriormente, o quadro piorou e Joãozinho começou a apresentar uma síndrome de hipertensão intracraniana (cefaleia
matinal, vômitos e papiledema). Provavelmente, a lesão inicial ganhou novas
proporções e passou a comprimir o IV ventrículo, ocasionando hidrocefalia
obstrutiva e aumento gradativo da pressão intracraniana.
Em
suma, o raciocínio para o caso do Joãozinho deve partir do pressuposto de que
havia uma lesão no hemisfério cerebelar esquerdo, expansiva, a qual evoluiu com
compressão do verme cerebelar, finalmente, colabando o IV ventrículo.
Neuroanatomia do cerebelo. http://neurocienciayplasticidadcerebraluned.blogspot.com.br/ |
O diagnóstico diferencial dos tumores da
fossa posterior
Os
tumores do sistema nervoso central só não são mais comuns que as leucemias, na
faixa etária pediátrica. Em se tratando de tumores sólidos, aquelas lesões são
as mais incidentes. De todas as neoplasias encefálicas em crianças, 50% estão
localizadas na fossa posterior, mesmo que esta contemple apenas 25% de todo o
conteúdo intracraniano. É comum a associação de lesão expansiva na fossa
posterior e hidrocefalia não comunicante, o que torna o procedimento de
derivação liquórica habitual nesses casos.
Existem
quatro tipos de tumores na região supracitada que merecem destaque: o meduloblastoma,
o astrocitoma cerebelar, o ependimoma e o glioma de tronco. Quando se fala em
síndrome do hemisfério cerebelar pura, o astrocitoma cerebelar deve ser questionado
como uma primeira hipótese diagnóstica. Vale ressaltar que, uma vez suspeitando-se
de um tumor do sistema nervoso, os métodos de neuroimagem são extremamente
importantes. A tomografia computadorizada de crânio com contraste costuma ser o
primeiro exame a ser solicitado, seguida de uma ressonância nuclear magnética.
Esta, o exame de escolha para avaliar lesões na fossa posterior.
Os astrocitomas cerebelares
Quase
sempre benignos, pouco invasivos, geralmente localizados em um hemisfério
cerebelar. Histologicamente costumam ser pilocíticos e, eventualmente, fibrilares.
Ocorrem na faixa etária dos 5-15 anos, com sinais clínicos de hipertensão
intracraniana e síndrome cerebelar, conforme já discutido. Podem ser totalmente
sólidos, cístico-sólidos, císticos com nódulo mural, císticos com captação de
contraste em toda a parede do cisto e policísticos. Têm um bom plano de
clivagem e não são rotineiramente muito vascularizados. Costumam captar
contraste e ser hipo- ou isointensos em relação ao parênquima cerebelar nos
exames não contrastados. Para diferenciar, os meduloblastomas, por exemplo,
costumam ser hiperdensos nos exames não contrastados e restringir a difusão nas
técnicas complementares de ressonância magnética; os ependimomas costumam
apresentar calcificações e projeções para os espaços liquóricos.
Ressonância magnética T1 com contraste: astrocitoma pilocítico cerebelar. http://anatpat.unicamp.br/rpgastropilo14.html |
O que irá acontecer a Joãozinho?
Joãozinho
primeiramente deverá ser tratado com corticóides e submetido a uma derivação
liquórica, resolvendo o quadro urgente de hidrocefalia obstrutiva. Dentre as
técnicas, pode-se utilizar a terceiroventriculostomia endoscópica, a derivação
ventricular externa ou a válvula de derivação ventrículo-peritoneal. Logo que tratada
a hipertensão intracraniana, seria programada a abordagem neurocirúrgica do
tumor.
O
tratamento dos astrocitomas cerebelares é basicamente cirúrgico. O objetivo é a
excisão completa da lesão, entretanto, caso permaneçam fragmentos residuais,
poderá optar-se pelo seguimento ambulatorial tendo em vista que o crescimento desses
tumores é lento. Haveria o risco de sequelas, mas Joãozinho poderia sim evoluir
para uma cura completa.
Fica então
a dica para os profissionais das áreas da saúde, os educadores e todos aqueles
que lidam com crianças que estão em idade escolar. Reconheçam os sinais de alarme
e procurem a melhor solução técnica e social, individualizada para cada caso.
mindasks( fonte)
Nenhum comentário:
Postar um comentário