Pouco estimuladas nos colégios e atraídas pelo computador, cada vez mais crianças têm dificuldades na escrita corrida
Carina Rabelo
A letra ilegível era uma marca
registrada dos médicos e suas receitas indecifráveis. Hoje, rompeu as
fronteiras da profissão e se tornou quase uma tendência na sociedade da
pressa. A ilegibilidade é uma das consequências da substituição do
caderno pelo computador e da pouca ênfase que se dá ao ensino da letra
cursiva nas escolas. Em outros tempos, os cadernos de caligrafia
moldavam a escrita dos alunos. Até hoje, representam um importante rito
de passagem para crianças recém-alfabetizadas que conseguem ultrapassar a
barreira da letra de forma e se capacitam na cursiva - aos 6 anos, elas
já se dividem em grupos dos que dominam o mundo da "letra corrida" e
daqueles que ainda continuam nas "letras separadas". Mas o entusiasmo é
arrefecido com o passar dos anos. Elas precisam fazer pouco uso da
técnica, pois até as provas são de múltipla escolha - basta marcar um X
nas alternativas propostas e ir para casa sem gastar a caneta. Fora de
uso, a letra perdeu a uniformidade e a nova grafia mescla traços
cursivos com letras maiúsculas, comprometendo até mesmo os sinais de
acentuação, como o til (~), que virou um traço (-). Nem sempre a
legibilidade é mantida. E dá-lhe garranchos incompreensíveis.
O impacto da disgrafia - a escrita incompreensível - na vida das pessoas vai além do senso estético.
Quem sofre deste distúrbio pode ser tachado de desleixado ou
problemático. E não ser compreendido na sociedade da informação é um
fardo que poucos podem carregar. A solução? Recorrer aos textos digitais
do e-mail e mensagens instantâneas, como MSN e SMS. "A tecnologia pode
ser a aliada e a vilã da história", afirma Marco Arruda, neurologista da
infância e da adolescência e diretor do Instituto Glia de Cognição e
Desenvolvimento. O excesso de informação, a falta de tempo e o
conforto da internet contribuem para a deformidade da letra, que se
torna dispensável e, quando utilizada, apressada e incompreensível. "Escrevo
muito rápido. Não dá tempo de enfeitar", afirma Lucas Dias Oliveira, 12
anos, que foi reprovado no ano passado porque os professores não
conseguiram corrigir a sua prova. "Não entendi nada", assinou a
professora na avaliação. "Ele é extremamente inteligente e rápido.
Tem uma velocidade incrível no teclado", afirma a sua avó, Marialva Dias.
"Mas a letra é um garrancho." Os
esforços de Marialva, que comprou dezenas de cadernos de caligrafia e
livros para o neto, não foram suficientes para que o menino deixasse o
computador e melhorasse a grafia. "Ele é agoniado, ansioso e necessita
de acompanhamento psicológico para melhorar a letra", afirma.
Janice
Cabral Falcão, psicóloga e presidente da Sociedade Brasileira de
Psicomotricidade, acredita que os cadernos de caligrafia não resolvem o
problema. Para ela, a falta de espaço para brincar e a vida sedentária
comprometem o tônus muscular das crianças, que ficam sem coordenação
motora e destreza para lidar com o lápis.
"Elas precisam participar das atividades
domésticas que exijam alguma habilidade manual", afirma. Para o
neurologista Marco Arruda, a escrita está mais relacionada com as
funções do cérebro do que com a tonicidade dos músculos e ele alerta que
a escrita ilegível pode ser um sinal de enfermidade ou transtorno
psicológico, como dislexia, déficit de atenção e hiperatividade.
"É preciso treinamento da letra com
sessões de reabilitação", afirma. O neurologista lembra que brincadeiras
fora de moda com bolas de gude e palitinhos, além das aulas de
caligrafia, favoreciam o desenvolvimento psicomotor da criança, que não
tem os mesmos estímulos nos jogos eletrônicos de hoje.
Não são apenas as crianças as vítimas da
disgrafia. A pesquisadora Luciana Moherdaui, 38 anos, especialista em
novas mídias e interfaces digitais, trocou os cadernos pelo computador
desde que saiu da faculdade. "A minha letra era legível, mas, depois que
passei a usar diariamente a rede, perdi a capacidade de escrever",
afirma Luciana, que explica ter o raciocínio igual ao Word - 'escreve,
erra, apaga e refaz' - impossível no texto à mão. Quando vai a uma
palestra em que não pode levar o seu laptop, a pesquisadora também não
leva o bloco de anotações. "Decoro tudo", diz. "Não entendo a minha
letra." Como especialista no tema, Luciana acredita que o futuro do
aprendizado caminha em direção às novas tecnologias. "A tendência é que
os meninos troquem os cadernos pelos mininotebooks." Apesar da
alternativa da tecnologia, ter letra legível (e bonita) ainda é
importante. "Já zerei provas no vestibular porque estavam incompreensíveis",
afirma José Ruy Lozano, corretor de redações dos principais processos
seletivos de São Paulo e professor de redação do ensino médio do Colégio
Santo Américo. Vale lembrar que as redações de vestibular também podem
ser escritas em letras de forma. Mas a cursiva ainda conta pontos, por
exemplo, em processos de seleção de emprego.
O ato de escrever teve os seus altos e
baixos na história. Sócrates e Platão (séc. V a.C.) eram contra a
escrita e defendiam a oralidade. Na Idade Média, ela ganhou visibilidade
e subiu ao altar com os monges copistas, que registravam a cultura e as
descobertas históricas em pergaminhos, para imortalizá-las ao longo dos
séculos.
"Ela passou a ser a escrita própria dos
textos cristãos, em oposição aos caracteres romanos dos textos pagãos",
afirma o grafólogo Paulo Sérgio de Camargo, autor do livro "Sua Escrita,
Sua Personalidade" (Editora Ágora).
A
caligrafia - palavra que tem origem no nome kallos (belo) e grafos
(grafia) - surgiu como arte quando o imperador Carlos Magno (742-814)
decidiu unificar os textos e documentos da Europa Central com a escrita
cursiva, conhecida como 'letra carolina', mais rápida que a tipografada.
Segundo os grafólogos, a cursiva é um sinônimo de elegância e
uniformidade, mas também rigidez e padrão. Por ironia, ela está sendo
gradativamente substituída pelo mesmo motivo que a originou - a
necessidade de rapidez.
"As escolas não se preocupam mais com a
letra", afirma o neurologista Arruda. "Os cadernos de caligrafia caíram
em desuso." Resta saber se as belas letras trabalhadas em rococós se
tornarão um raro tesouro, que sobrevive apenas nos convites de formatura
ou casamento.
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